Análise do Projeto

«Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

[...]

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Da crônica Eu sei, mas não devia, publicada pela autora Marina Colasanti(1937) no Jornal do Brasil, em 1972

Introdução

Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o conceito de Desenvolvimento Humano, parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso considerar três dimensões básicas: renda, saúde e educação. Nesse sentido são avaliados o seguintes parâmetros: uma vida longa e saudável (esperança de vida à nascença), a educação (medida segundo a taxa de alfabetização de adultos e a taxa bruta combinada de alunos matriculados no ensino primário, secundário e superior) e um nível de vida digno (calculado pelo Produto Interno Bruto por habitante, em dólares) Esse conceito consiste na base do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicado anualmente pelo PNUD. Desde 2000, o Programa também fomenta o comprometimento e a discussão em prol do alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Em 2015 foi definida a Agenda 2030, constituída por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Esta Agenda aborda várias dimensões do desenvolvimento sustentável (sócio, económico, ambiental), promove a paz, a justiça e instituições eficazes. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm como base os progressos e lições aprendidas com os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, estabelecidos entre 2000 e 2015, e são fruto do trabalho conjunto de governos e cidadãos de todo o mundo.

O Projeto VELEDA contribui especialmente para as seguintes metas traçadas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável:

Meta 5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida politica, económica e pública.

Meta 10.2 Empoderar e promover a inclusão social, económica e política de todos, independentemente da idade, género, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição económica ou outra.

Em PORTUGAL a Educação para o Desenvolvimento (ED) passou a constituir uma prioridade através da Resolução do Conselho de Ministros nº 16, de 2005. Nesse âmbito, em 2009 foi aprovado o documento de orientação da Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2010-2015 (ENED), através do despacho nº 25931/2009, publicado na edição do DR. II Série, de 26 de novembro. A ENED 2018-2022 sucede à Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2010-2016. Tem por função atualizar a mesma de acordo com os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável aprovados em setembro de 2015 dando continuidade a estratégia anterior na prossecução dos seus objetivos. Resulta do compromisso político assumido por entidades públicas e Organizações da Sociedade Civil (OSC) para a definição e implementação conjuntas de um quadro estratégico de atuação na área da ED para os próximos cinco anos.

A promoção da ED constitui um contributo inegável para a prossecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular, para, até 2030, garantir que todos os e todas as aprendentes adquiram conhecimentos e capacidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da ED sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de género, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global, e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável (Meta 4.7.).

O objetivo geral da ENED 2018-2022 é promover a cidadania global através de processos de aprendizagem e de sensibilização da sociedade portuguesa para as questões do desenvolvimento, num contexto de crescente interdependência, tendo como horizonte a ação orientada para a transformação social.

Desta forma, a ENED 2018-2022 procura promover a tomada de consciência e a mobilização dos cidadãos e cidadãs através de abordagens educativas e de temas transversais às questões do desenvolvimento.

"A educação e a sensibilização para o desenvolvimento contribuem para a erradicação da pobreza e para a promoção do desenvolvimento sustentável através de abordagens e atividades educativas e de sensibilização da opinião pública baseadas nos valores dos direitos humanos, da responsabilidade social, da igualdade de género e num sentimento de pertença a um só mundo, em ideias e perceções das disparidades entre as condições de vida dos seres humanos e dos esforços necessários para ultrapassar essas disparidades, bem como na participação em ações democráticas que influenciam as situações sociais, económicas, políticas ou ambientais que afetam a pobreza e o desenvolvimento sustentável [...], têm por objetivo permitir que todos os cidadãos da Europa disponham em permanência de oportunidades de sensibilização e de compreensão dos problemas relacionados com o desenvolvimento global, bem como da sua pertinência local e pessoal, e possam exercer os seus direitos e assumir as suas responsabilidades enquanto cidadãos de um mundo interdependente e em mutação, influenciando a evolução para um mundo justo e sustentável." (Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. IPAD, 2017.p.13)

Penso que este conceito de educação para o desenvolvimento esteve muito presente ao longo dos laboratórios VELEDA do projeto, uma vez que a própria arte participativa está imbuída destas características enquanto processo essencialmente dinâmico e participativo.

Por outro lado, interessa especialmente destacar o conceito de educação não formal, uma vez que abre espaço para outras formas de educação e outros novos e infinitos espaços educativos, assim como à possibilidade do estabelecimento de parcerias efetivas com outros grupos da sociedade civil.

A educação não formal diz respeito a iniciativas educativas organizadas e intencionais que se desenrolam num contexto organizacional específico, independentemente do espaço onde ocorre, e de acordo com objetivos e horários definidos, mas que não conduzem necessariamente a certificados formais. São exemplo disso, no quadro da ED, ações de formação, oficinas, seminários e iniciativas realizadas no âmbito das atividades das OSC, de organismos públicos ou de outros atores, ou integradas em projetos educativos do sistema formal de ensino, enquanto parte de projetos específicos, de formação contínua de professores e professoras, de clubes, redes de bibliotecas escolares, envolvendo as comunidades educativas e diferentes OSC, organismos públicos ou outros membros das comunidades educativas (Diccionario de Educación para el Desarrollo, HEGOA, 2007: 150), bem como outros atores reconhecidos como relevantes. (IPAD, 2017.p.17).

É neste âmbito de educação não formal que se desenvolvem as iniciativas PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian.

Educação e Desenvolvimento

Nesta análise iremos utilizar o conceito de desenvolvimento no ciclo vital de Paul Baltes, que reconhece que o mesmo acontece durante toda a vida.

Esse conceito de um processo vitalício de desenvolvimento que pode ser estudado cientificamente é conhecido como desenvolvimento no ciclo vital. Paul B. Baltes (1987; Baltes, Lindenberger e Staudinger, 1998), líder no estudo da psicologia desse desenvolvimento, identifica os princípios fundamentais de uma abordagem do desenvolvimento no ciclo vital, os quais servem de estrutura para o seu estudo. (Papalia, 2006, p.48)

Os sete princípios fundamentais enunciados pela equipa de Baltes são:

1. O desenvolvimento é vitalício.

2. O desenvolvimento é multidimensional.

3. O desenvolvimento é multidirecional.

4. Influências relativas de mudanças biológicas e culturais sobre o ciclo de vida.

5. O desenvolvimento envolve mudança na alocação de recursos.

6. O desenvolvimento revela plasticidade.

7. O desenvolvimento é influenciado pelo contexto histórico e cultural. (Papalia, 2006)

O Projeto VELEDA acolheu nos seus laboratórios mulheres com idades compreendidas entre os 25 e os 60 anos de idade. Nesse sentido, os princípios enunciados por Baltes parecem-me importantes, uma vez que e o principal objetivo do Projeto VELEDA (promover o empoderamento das mulheres sós com filhos à cargo, destinados a combater os estigmas sociais relativos às famílias monoparentais femininas) ficaria comprometido se tivéssemos em conta um conceito de desenvolvimento mais estanque, sem esta plasticidade, mudança na alocação de recursos e demais características assinaladas pelo autor. Por outro lado, é neste contexto de aprendizagens sociais, onde o meio influencia o indivíduo e o indivíduo influencia o meio que se revelam pertinentes os objetivos propostos pelo Projeto, nomeadamente no combate aos estigmas sociais.

Educação de Adultos

No contexto atual, a condição de adulto encontra um cenário complexo onde deve conviver com frequentes transições, que se traduzem em processos de transformação. (Silva, 2003)

Nesse sentido, a condição de adulto em permanente desenvolvimento configura-se, para uns, como uma permanente imaturidade (Boutinet, 1998) acompanhada de angústia. Para outros, pelo contrário, configura-se como uma oportunidade de satisfação e reconciliação do sujeito consigo mesmo (Avanzini, 1996), como um projeto reflexivo do self, (Giddens, 1997), como uma possibilidade de formação e de transformação (Houde, 1989); em síntese, encontra-se numa evolução insatisfeita na sua totalidade, mas onde estão presentes a abertura e a esperança para a vida. (Silva, 2003, p:46).

O autor salienta a importância das propostas inovadoras no âmbito da formação de adultos, baseadas nas narrativas de vida que colocam o formando no papel central na construção das práticas de formação. Coloca ainda a ênfase na experiência dos sujeitos e a forma como estes a percecionam e conceptualizam. (Silva, 2003).

No caso do Projeto VELEDA, o papel central dos formandos é vivenciado nos laboratórios e grupos de encontro, onde os contributos das equipas multidisciplinares surgem na forma de sugestões e os planos de sessão são reorientados em função da disponibilidade, necessidade e interesse das participantes. A experiência das participantes é variada, dando lugar a multiplicidade de relatos, por vezes opostos. As questões de género, violência doméstica e abandono aparecem frequentemente.

A metodologia utilizada nos laboratórios parece ter em conta esta ideia de processo formativo, dando especial atenção as vivencias das participantes no planeamento e implementação das sessões.

Durante muito tempo a educação de adultos esteve associada a práticas formativas destinadas a dotar a população ativa de novas e melhores competências para o mercado de trabalho. Hoje em dia, este conceito é mais amplo e engloba praticamente todas as áreas sociais. Segundo Teresa Ambrósio, este novo conceito de educação ao longo da vida, permite-nos pensar um novo conceito de educação.

A partir deste novo conceito promove-se um novo quadro para repensar a Educação como um (o) caminho possível para que se tenham outros modelos de Desenvolvimento (o desenvolvimento humano e a reorganização social sustentável) entre o caos, a incerteza e o risco da realidade complexa à qual somos hoje sensíveis. A Formação ao Longo da Vida cumpre-se então, não só como um objectivo das políticas de Educação e de Formação, mas também como um objectivo do traçado também continuo dos desígnios estratégicos nacionais e de promoção da Cidadania (Morin e Moreira). (Ambrósio, 2006, p.20)

O Veleda é também um projeto de participação cívica, multidirecional, que visa consciencializar não só as mulheres que nele participam, como também à comunidade que as acolhe, através das manifestações artísticas, publicações e outros encontros onde o diálogo entre participantes, gestores, parceiros e comunidade tem sido uma constante. A singularidade do projeto tem a ver com que esta participação cívica é dinamizada de dentro para fora, isto é, partindo do particular para o geral, da vivência pessoal para a comunidade e depois para a realidade da região, do país, da europa e outros países, num diálogo constante entre a realidade e o discurso político, entre a possibilidade e o desejo.

Este pensamento reflexivo que surge na vida adulta "[...] envolvendo avaliação continua e ativa das informações e crenças levando em conta as evidencias e implicações. (Papalia, 2009, p:488)" acompanha os laboratórios VELEDA em todas as suas etapas, através de diários do projeto, partilhas informais, avaliações das sessões e outras atividades.

Segundo Teresa Ambrósio, a educação ao longo da vida pode ser um elemento de regulação social, coisa com a qual concordo profundamente, uma vez que nos seres humanos, a mudança mais duradoura é aquela que acontece de dentro para fora.

[...] a Educação/Formação ao Longo da Vida pode, também ela, ser um elemento de regulação social, suporte de uma Educação emancipadora e do Desenvolvimento Humano e de construção da Democracia participativa para a defesa dos Direitos Humanos. A construção do sujeito ao longo da vida, a sua personalização e o florescimento das suas aptidões e capacidades, valoriza o processo autorregulador, antropológico e social dos sistemas vivos (pessoas, cidadãos). A Educação/Formação ao longo da Vida põe em confronto, assim, os sistemas e os processos sociais de aprendizagem com os processos individuais evitando a reprodução social e exigindo uma adaptação complexa permanente. (Ambrósio, 2006, p.23)

Por outro lado, esta autoformação identificada pela autora, atravessa os laboratórios VELEDA, onde os participantes interagem partilhando e reconstruindo experiências.

Se o enquadramento do sujeito em comunidades humanas (família, escola, grupos étnicos, profissionais) é indispensável à construção da identidade, da autonomia do indivíduo (papel primordial dos processos escolares de desenvolvimento da identidade e da socialização autónoma), a Auto-formação ao longo da Vida do sujeito autónomo, identificável nas comunidades, confere-lhe a dimensão do sentimento e do sentido de si (Damásio), da percepção e da experiência que pode ser integrada em diversos níveis de conhecimento. A recursividade das interações entre sujeitos através da informação e do conhecimento pode ser transformada em interações dialógicas e fazer emergir os projetos coletivos de ação, em consciência e sentido (Ricoeur). Esta é uma das bases filosóficas actuais do Desenvolvimento Humano Sustentável. (Ambrósio, 2006, p.25)

O Veleda enquanto Prática Artística Comunitária

A arte comunitária é a criação de arte como direito humano, por artistas profissionais e não-profissionais, que cooperam entre iguais, para propósitos e com padrões estabelecidos em conjunto, e cujos processos, produtos e resultados não podem ser conhecidos antecipadamente. (Matarasso, 2019, p.65)

As práticas artísticas comunitárias têm vindo a ganhar cada vez mais terreno como espaços de participação cívica. Debate-se a primazia dos processos sobre os resultados, mas tendencialmente aceitamos que o caminho percorrido é substancialmente mais importante do que o resultado final. Os laboratórios VELEDA integram mulheres que nunca tiveram contacto com atividades teatrais, mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade social, mulheres com e sem formação acadêmica.

Uma democracia moderna precisa de uma ligação efetiva entre a criatividade e a inclusão. PARTIS - Práticas Artísticas para a Inclusão Social - é uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian de apoio a projetos que visem testar e demonstrar o papel que as artes podem desempenhar nos percursos de integração de comunidades mais vulneráveis. São projetos que criam espaços de liberdade e de aprendizagem permanente, onde se desfazem preconceitos e se ensaia a compreensão e o respeito mútuo. (Cruz,2019. p.7)

Neste processo de integração saliento a importância na desconstrução dos preconceitos que provocam a marginalização de certas condições sociais. Conhecer e partilhar projeto com pessoas de diversos estratos socioeconómicos permite trabalhar em pequenos grupos estas ideias prévias que existem nas comunidades e que provocam muitas situações de conflito, exclusão e segregação, muitas vezes porque não se tem consciência da existência das mesmas.

Esta dimensão reflexiva tem acompanhado os laboratórios Veleda desde o princípio.

Num espaço vivencial onde o tempo se tornou uma "mercadoria" preciosa, importa muitas vezes parar e pensar. Trazer a dimensão reflexiva para as nossas vidas é central, assumindo-a como um exercício contínuo, que nos reconecta pessoal e coletivamente com o que nos envolve enquanto contexto. Refletir não será por isso perder tempo, pode inclusive contribuir para o ressignificar. (Cruz, 2019, p. 13)

O projeto Veleda tem seguido um caminho acidentado, assim como tantos outros projetos que se viram subitamente interrompidos e transformados pela crise pandémica. A própria flexibilidade da definição de arte comunitária, permitiu que o projeto se adaptasse ao distanciamento social. Surgiram assim os «diários» as conversas online as sessões com temas específicos, o grupo whatsup, os «desabafos da quarentena», as criações individuais das participantes, os vídeos com leituras e outras tantas coisas que ajudaram a fortalecer os laços de cumplicidade no meio da dificuldade partilhada. Podemos afirmar categoricamente que o Projeto funcionou no combate ao isolamento social, de uma forma que nem sequer poderíamos ter imaginado, mas numa dinâmica de fortalecimento da comunidade que Matarasso inclui nos objetivos da arte comunitária:

Faz também parte das intenções da arte comunitária que o empoderamento ultrapasse o plano individual, apoiando as pessoas no processo de criar ou fortalecer a comunidade. Isso acontece à medida que as pessoas se vão conhecendo umas às outras, partilhando competências, ideias e recursos, desenvolvendo empatia e confiança através da partilha de experiências, reconhecendo identidades e interesses comuns, e cooperando em projetos. (Matarasso, 2019, p.122).

Sessão sobre os direitos laborais na maternidade

Atividade dinamizada pela equipa do projeto em colaboração com o MDM

Sinopse: A proposta é dinamizada através de um jogo de papéis onde cada participante recebe indicações para representar uma personagem, em diferentes contextos de trabalho, onde os direitos não são respeitados. Após a encenação das situações é realizado o debate, são esclarecidas as questões legais existentes e é promovida ainda uma troca de ideias sobre possíveis melhorias legais para alargar a proteção das famílias monoparentais no âmbito laboral.

Nesta atividade, verifica-se que o formando está no centro da ação, é valorizado a sua experiência e a maneira como a perceciona enquanto se envolve na resolução das dificuldades sentidas.

O tempo ou mais precisamente, a falta dele, é uma queixa recorrente das mulheres que têm filhos menores a cargo. O stress, o sentimento de estar a viver sempre em falta ou perante tarefas que nunca mais acabam são motivos de desespero para muitas destas mulheres. Ideias de desorganização, acumulação de tarefas, imprevistos e cansaço acumulado são verbalizadas constantemente ao longo dos laboratórios. Uma mais valia do projeto foi a sensibilidade com que encarou esta questão do tempo em todas as suas sessões, sendo muito flexível na gestão do mesmo.  

Contrariamente ao que seria de esperar, é nos laboratórios VELEDA onde o grupo se mostra mais comprometido com o projeto. Isto é, o projeto não é assumido como uma tarefa, obrigação. É assumido como um espaço de partilha e de encontro. Ouvimos nas sessões mulheres a dizer que tinham muito que fazer, mas estavam com saudades e decidiram vir. Nesse campo, o Teatro guarda também um segredo, que é o da disponibilidade. O Teatro trabalha no temo presente, o «aqui e agora» são condições fundamentais para o jogo da representação acontecer, tanto para os atores como para o público. O resultado é que no fim de cada sessão, sentimos que foi produtivo e que valeu a pena estar presente.

Segundo Boutinet (1998) o tempo linear, cumulativo e orientado conduz ao progresso e ao crescimento, uma vez que nos permite projetar e planificar as nossas ações. Contudo, vivenciamos em simultâneo o tempo segmentado, na tentativa de aproveitar de forma eficaz o tempo, através do relógio, da agenda, das tarefas. Este tempo segmentado, é determinado pela moda, que desvaloriza o tempo presente. Esta memória da experiência é fundamental para orientar o futuro e, ao mesmo tempo, para modelizar a experiência passada. Se no presente vivido o sujeito se encontra desorientado na sua gestão, não sendo capaz de vislumbrar o futuro e de se comprometer com ele, poderá encontrar uma perda de sentido, uma crise de ideias, mesmo uma desilusão. (Silva, 2003, p. 42).

Os laboratórios recorrem a técnicas da animação teatral de forma a conseguir dar ferramentas às participantes, promovendo a participação na procura ativa de possíveis caminhos de desenvolvimento.

As práticas de animação, sendo na aparência simples, revelam-se, quando analisadas em profundidade, significativamente complexas, na medida em que visam, no médio e longo prazos, sobretudo pela educação não formal, a iniciativa para a mudança e a participação das comunidades no processo do seu próprio desenvolvimento sustentável, sem descurar a natureza contraditória e conflitual da vida sociopolítica em que os sujeitos estão integrados. (PÉREZ-SERRANO; GUZMÁN-PUYA, 2006). Por outras palavras, a intervenção comunitária pela animação desenrola-se no mundo da vida real, mas cria no seu seio contextos de proximidade, com a capacidade de gerar comunidades de aprendizagem. (Barros, 2011.p.181)

Por outro lado, cria-se uma comunidade de aprendizagem, que envolve muito mais do que os destinatários do projeto. Através das palestras, das apresentações, do documentário, das publicações, promove o envolvimento de outros setores da sociedade que, pelo confronto com os resultados artísticos apresentados, ficam sensibilizados e interessados nesta temática que aqui se discute, sendo assim chamados para o processo de intervenção.

Dentro do laboratório reúnem-se diversas faixas etárias e culturas à volta de um problema comum, que é a situação da monoparentalidade e as dificuldades que ela acarreta. O próprio grupo, que reúne no seu seio mulheres de diversos contextos socioeconómicos, inclui ainda mulheres de diversas nacionalidades, inclusivamente uma mulher refugiada de um país árabe, o que traz um enorme contributo às questões de inclusão, respeito e aceitação das diferenças culturais, tão necessária num mundo cada vez mais global.

[...] das várias características socioculturais e sociodemográficas em presença num dado grupo, há que saber retirar sinergias e conteúdos para as atividades educacionais que aportem significados e interesses partilhados, capazes de fazer expandir o que se sabe para produzir, a partir daí, novas aprendizagens interculturais e intergeracionais. Trata-se de contextualizar a ação educacional por meio da valorização e da reflexividade sobre a experiência de vida. (Barros, 2011.p.182).

Ainda sobre as questões de interculturalidade, François Matarasso destaca o papel importante que a arte participativa tem vindo a ganhar ao longo destes últimos anos e o importante contributo na chamada de atenção para os mais diversos assuntos, desde as alterações climáticas até as condições precárias dos refugiados. Assegurava o autor que todas as experiências demostravam como a arte participativa nos pode ajudar nos tempos difíceis. (Matarasso, 2019). A crise pandémica  provocada pelo surto do vírus covid-19, veio confirmar esta afirmação.

Estas experiências mostram-nos como a arte participativa pode ajudar-nos a atravessar tempos difíceis, proporcionando-nos formas de expressar dor, revolta e esperança, de fazer amigos e encontrar aliados, imaginar alternativas, partilhar sentimentos e ser aceites. O ato artístico é um meio de agir no mundo, uma forma de falar e ser ouvido. Quando concretizado por artistas profissionais e não-profissionais em conjunto, torna-se uma expressão de humanidade partilhada, vozes diferentes em harmonia, escutando-se umas às outras. Torna-se um compromisso com a ideia de que é mais o que temos em comum do que aquilo que nos separa, incluindo a dignidade humana. (Matarasso, 2019.p. 211)

O grupo Veleda crio, durante o primeiro confinamento, diários da quarentena, um grupo online, reuniões online e partilhas de experiências, aproximando asi as participantes em tempos de incerteza e criando um verdadeiro grupo de entreajuda e criação artística à distância.

Conclusão

A educação de adultos em contexto não formal pode e deve utilizar novos formatos. As práticas artísticas participativas demonstram um enorme potencial no trabalho sobre temáticas específicas e no desenvolvimento de competências pessoais e sociais que facilitam a integração e proporcionam novas ferramentas de participação na sociedade.

O Projeto Veleda mostrou-se eficaz na integração dos participantes, mas é evidente que a problemática da monoparentalidade é bastante complexo e as situações de exclusão são vivenciadas pelas participantes em diversos contextos, sociais, familiares, laborais, etc. De qualquer forma o sentimento de pertença a um grupo, a aceitação, reconhecimento, carinho e apoio sentidos pelas participantes ao longo do projeto funcionaram como «rede de suporte emocional» e aumento significativo da valorização da própria pessoa enquanto agente promotor de mudança, o que resulta em ganhos significativos desde o ponto de vista da experiência.

Relativamente ao empoderamento das mulheres, para além desta tomada de consciência do poder fazer, da reflexão pessoal, do suporte do grupo, considero todos os documentos elaborados e todas as ações artísticas que envolveram público e comunidade importantíssimos, uma vez que contribuíram significativamente na reconstrução da identidade e na ideia de participação que todas tínhamos sobre as questões da monoparentalidade, passando de um estado passivo, para um estado muitíssimo mais ativo, tanto na procura de soluções, como na desmistificação de muitas situações associadas a monoparentalidade, através dos testemunhos e relatos partilhados.

Lamentavelmente, na região da Beira Interior encontramos ainda muitas situações de monoparentalidade encoberta, onde outros elementos do agregado familiar assumem a figura paterna para evitar que a criança sofra o estigma «filho de mãe solteira» na comunidade. O facto de ser um tema «tabu» nas comunidades do interior demonstra por um lado a urgência em tornar pública esta realidade, e por outro, a importância de ser as próprias pessoas da comunidade a reivindicar os seus direitos.

As aprendizagens que as participantes realizam dentro deste grupo são diversas. No final, cada participante leva desta experiência o que faz sentido para a sua realidade. Não existem aprendizagens garantidas neste modelo de pratica artística participativa, embora duvido que a pessoa consiga vivenciar um projeto de arte comunitária sem nenhum tipo de transformação. Apesar do forte impacto que este tipo de projetos possa ter junto de uma comunidade, Matarasso afirma:

A arte participativa não tem capacidade para resolver estes desafios existenciais, mas pode ajudar-nos a enfrentá-los nos locais onde vivemos e convivemos. Quando no seu melhor, a arte participativa cria um espaço onde todos podem falar e ser ouvidos, onde dor e esperança podem ser partilhadas, onde é possível chegar a consensos e encontrar formas de trabalhar em conjunto, onde a criatividade e empatia podem encontrar melhores formas de viver. Potencialmente, tudo isto torna a arte participativa mais pertinente em locais demasiado pequenos ou fracos para serem notados pelas forças do poder. (Matarasso, 2019. p. 31)

Pessoalmente, penso que o sentimento de pertença, a amizade deste grupo de mulheres e todas as aprendizagens e memórias construídas durante o projeto terão um efeito duradouro em mim.

A aprendizagem mais importante que tenho feito ao longo deste processo tem a ver com esta questão do tempo de qualidade, que é aquele que é vivido «aqui e agora». Estar presente, cem por cento presente e disponível para aquilo que se está a fazer, naquele momento. E fazer com outros, o que é sempre uma experiência poderosa em todas as idades. 

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